quinta-feira, 29 de setembro de 2016

O Elevador - Conto - Terror


Ele saiu do quarto para o corredor do hotel cantarolando algo que havia acabado de inventar. Era animado e gostoso tanto de assobiar quanto de ouvir de seus próprios lábios. Soava meio como Elvis meio como Johnny Cash, se é que isso era possível. Girou o cartão-chave na mão direita enquanto balançava as chaves do carro distraidamente na esquerda.
O corredor era largo e ele passou pelas outras portas fechadas até o elevador. O mostrador digital acima do arco de entrada do fosso indicava que o transporte estava no T, térreo. Ele apertou um botão em forma de seta apontada para baixo que imediatamente se iluminou. Ouviu um zumbido suave enquanto as correntes eram movidas, engrenagens giravam e cabos de aço eram erguidos e, é claro, a morte se aproximava.
Ele esperou, agora, cantarolando. Minha nossa, aquele som era realmente bom! Pensou em, assim que voltasse ao quarto, pedir o celular da mulher, que era bem mais moderno que o seu, e tentar gravar, ao menos o que lembrasse – e esperava lembrar tudo – da melodia do assobio. Poderia até pedir a um amigo do trabalho (que costumava escrever poesias no Ensino Médio) para criar uma letra para sua música. Se vivesse para voltar ao trabalho massante: oito horas diárias em frente ao monitor, amém.
Houve um barulho de sino quando o elevador chegou. A abertura das portas revelou um casal de adultos – ambos com bronzeados recentes – que o olharam desconfiados.
Alguns segundos se passaram antes dele ter a presença de espírito de pôr a mão no sensor do elevador, impedindo-o de fechar.
Descendo? – perguntou.
A expressão desconfiada do casal misturou-se à incompreensão.
Descendo? – repetiu. – O elevador?
Como os rostos continuaram pateticamente contraídos com sobrancelhas erguidas, olhos arregalados e bocas quase abertas, ele começou a apontar para baixo.
Descendo?
O casal finalmente pareceu entender. O que era ótimo, porque a canção – ele sentia – estava começando a fugir-lhe como a vida foge do paciente moribundo.
Non. – disse a mulher. – Arriba.
Ele entendeu e assentiu. O homem despediu-se da mulher dizendo algo numa língua que obviamente não era espanhol e saiu do elevador, desaparecendo numa curva do corredor, mais a frente. As portas do elevador fecharam novamente, encerrando a mulher sozinha em seu interior silencioso. Antes que um lado da porta encontrasse o outro, ele viu a luz lá dentro falhar, mas só por um segundo. Viu, também, os olhos da mulher, muito azuis, fitarem os seus, não mais em desconfiança ou incompreensão, ou espanto, mas apenas em pânico. Puramente pânico.
A música quase fugiu, mas ele agarrou-a pela memória como um fio de vida. Não pensou no medo nem no pânico naqueles olhos azuis estrangeiros.
Primeiro, assobiou e depois cantarolou novamente, sentiu o coração desacelerar e a respiração voltar ao normal (nem ao menos percebeu que eles haviam acelerado, mas haviam). Essa passou perto.
Ele não era músico nem nada, e sabia apenas arranhar o violão (o que não fazia há uns quinze anos, tinha dificuldades especiais no fá e no si maiores), porém, já começava a pensar naquela canção como a obra de arte de sua vida. Quem sabe, poderia vendê-la para uma propaganda (combinava bastante com a propaganda de cigarro, caso não houvessem proibido-as, há alguns anos), ou poderia ser a abertura de uma novela, quem sabe? O céu é o limite.
O mostrador na parede acima anunciou que o elevador subira até o sétimo andar. Ele não percebeu o número falhar e sumir quando o sete surgiu. Em seguida, os números começaram a diminuir.
O zumbido suave e embalado de maquinaria cessou quando o número era “3”. A essa altura, a canção já era doce em sua boca.
Quando as portas se abriram, todo o sangue cobrindo as paredes metálicas não era nada. Todo o cheiro cobre de sangue fresco não era nada. As tripas escorrendo no espelho do fundo não eram nada. O cérebro esmagado a um lado, muito menos. Os olhos muito azuis arrancados e jogados a um canto, fitando o teto, não era nada. Também não era nada, nem tragédia, nem infortúnio, o corpo destroçado da mulher deitada no piso do elevador, ou seu braço decepado que tombou para o corredor. As portas automáticas bateram nele e se abriram. Voltaram a tentar fechar. Se abriram de novo. Fecharam. Abriram. Fecharam. Abriram. Fecharam…

A grande tragédia, a grande lástima, o grande infortúnio, desventura, calamidade, a grande fatalidade foi que, com essa visão, a canção se fora.